Olho para trás e vejo-me.
Tinhamos chegado de Angola, ou melhor, do Brasil, para onde fomos quando saímos de Angola e onde permanecemos alguns meses (tirando o meu pai que foi para a RSA).
Havia animais, desde galinhas a coelhos e a porcos, havia jardins enormes, lembro-me de toda aquela imensidão aos olhos de pacanina... lembro-me de corredores feitos de Hortênsias lilases e rosa, lembro-me das enormes varandas, lembro-me da escadaria, dos salões, da resmunguisse do padrinho da minha mãe, do meu primeiro Natal, da queda do meu primeiro dente, da ida do meu irmão para a primária.
Bem analisado ainda terei lá morado cerca de 4 anos.
Das coisas que mais marcam a minha memória desses tempos de pacanina e destemida:
- Ao lado da minha avó, deitadas nos colchões no chão, a rezar : "Anjo da guarda minha companhia, guardai minha alma de noite e de dia"
- Subir e descer aquelas escadas enormes para ir buscar ao quarto os óculos da minha mãe. Às escuras e de gatas... sem medos.
- Ver fazer chouriços, fazer queijo, migar as couves para a criação e o pior de sempre: assistir à matança do porco :(
- Cair durante uma festa em cima duma grade de cervejas e cortar bem perto do pulso. O meu pai a colocar-me na ferida, não recordo se a cinza ,se mesmo o tabaco antes de queimado. E depois ser cozida e assistir a tudo impávida e serena, sem uma lágrima.
- O feitio do padrinho da minha mãe era algo ... diferente... o fogareiro estava aceso no meio da sala e as castanhas e batatas doces assavam, passei a correr para que ele não reclamasse e caí de barriga em cima do fogareiro...
- A crueldade ingénua de ter partido os ovos que estavam a ser chocados e ter visto os pintaínhos ainda em "formação". A defesa do meu irmão perante a prima Carlota.
- A cobra que o meu pai matou à entrada da casa.
- Descer as escadas no 25 de Dezembro e encontrar, não obstante tantas dificuldades, os tão ansiados presentes que, curioso, não consigo lembrar. Apenas recordo os do meu irmão.
Fui feliz naquele tempo, era pacanina, ingénua e pura. Não tinha noção de todas as dificuldades porque passavam os meus pais, nem que a casa não era nossa, nem que não poderiamos ficar mais... mas não tinha medo...
E hoje tenho medo! Tenho 32 anos, sinto-me desprotegida por não ter a ingenuinidade da criança, embora a criança ainda viva em mim!
[No local onde existiu outrora esta bela casa, nasceu posteriormente uma grande urbanização. Esta casa situava-se em rio de Mouro, Mem Martins.]